E-mails antigos de Satoshi só agora vieram à tona

Nesta série de artigos intitulada Os Primórdios, trago reflexões sobre primeiros dias do Bitcoin, quando Satoshi ainda se correspondia em posts de diferentes fóruns e por e-mails trocados com os primeiros colaboradores antes de desaparecer por completo.

Assim como a física teórica busca explicar as leis naturais e o mundo de hoje investigando o que ocorreu no início do universo, uma arqueologia dos primeiros dias e meses do Bitcoin são preciosos para explicar quais são as regras e escolhas que determinaram seu sucesso, quais são as questões que encontramos desde o início e que ainda persistem e o quanto o Bitcoin difere de outros projetos. Não penso que a palavra de Satoshi deva ser reverenciada como se fosse a voz de um profeta ou de um semi-deus, nem busco saber quem era realmente Satoshi Nakamoto. O tipo de investigação que trago nestes aqui serve para aferir algo que julgo ser um dos valores principais do Bitcoin: a integridade de seu protocolo e de sua história; como a ordem monetária inaugurada pelo Bitcoin pode ser entendida como um conjunto de regras estáveis e isonômicas que tiveram uma adoção orgânica, sem mudanças retroativas e arbitrárias para beneficiar alguma pessoa ou grupo específico, como ocorreu nos outros projetos que o sucederam.

Quanto mais investigo a história – ou mesmo pré-história do Bitcoin – vejo como a natureza open source do Bitcoin foi importante para que erros fossem corrigidos de forma rápida e transparente, ainda que as primeiras críticas que Satoshi recebeu revelam um ceticismo disseminado quanto à possibilidade de existir uma moeda totalmente descentralizada que funcionasse sem a necessidade de um terceiro intermediário, como há muitos anos se sonhava. As primeiras versões do Bitcoin, porém, continham bugs e atributos que podiam ter levado o Bitcoin ao fracasso. Não estava especificado, por exemplo, o tamanho dos blocos, nem o limite máximo de 21 milhões de unidades. No white paper e na v0.1.0 o algoritmo de consenso está errado. Satoshi originalmente pensava que a seleção da cadeia de blocos válidos deveria ser aquela com mais blocos. Mas a cadeia com mais blocos não tem necessariamente mais trabalho computacional. Então Satoshi teve que fazer uma alteração importante para a regra atual de mais trabalho como cadeia válida, mesmo após o lançamento da v0.1.0. Até hoje esse erro ainda confunde muitos que leem o white paper e não percebem que ele está incorreto. Exemplos como estes nos mostram que não fosse a colaboração e avaliação crítica de muitos que ajudaram Satoshi lá no início, provavelmente o Bitcoin teria falhado.

No primeiro artigo da série, busquei explicar os motivos que levaram Satoshi ao ostracismo no começo de 2011 e por que este gesto foi fundamental para termos uma moeda sem líder e verdadeiramente descentralizada, ao contrário das fiats e de tokens pré-distribuídos arbitrariamente como Ethereum, que até hoje precisam confiar em lideranças carismáticas com enorme poder sobre as regras do protocolo. No segundo artigo, comento um vídeo que foi ao ar em fevereiro do mesmo ano, onde o host do podcast SecurityNow chamado Steve Gibson explica muito entusiasmado e também com muito conhecimento como funciona essa nova moeda que vivia na internet e que problemas ela busca solucionar. Neste terceiro artigo, vou comentar os e-mails de Satoshi Nakamoto que foram revelados ao público somente na semana passada por Adam Back e Martti Malmi.


Para quem não sabe, está ocorrendo neste exato momento uma importante batalha judicial nas cortes inglesas entre a organização não-lucrativa chamada COPA (Cryptocurrency Open Patent Alliance), que luta para manter o Bitcoin um projeto open source, e Craig Wright, ou Faketoshi, a única pessoa do mundo que temos certeza que não é Satoshi Nakamoto.

Seria só cômico assistir a este mitômano se contradizendo inúmeras vezes ao tentar provar ser Satoshi não fossem os danos concretos que ele tem causado a muitas pessoas. Além de ser um impostor, Faketoshi costuma intimidar desenvolvedores core do Bitcoin com ações judiciais milionárias, tenta remover o white paper de domínios públicos dizendo ter direitos de copyright sobre ele e ainda promove cópias fracassadas do Bitcoin como o famigerado BitcoinSV, enganando seu público e investidores.

Obviamente até hoje ele não apresentou nenhuma prova concreta de suas alegações e neste processo foram arroladas duas testemunhas que recentemente apresentaram provas que buscam refutá-las: o conhecido criptógrafo cypherpunk Adam Back, citado no próprio white paper, e Martti Malmi, um dos primeiros programadores a ajudar Satoshi com Bitcoin e hoje desenvolvedor do protocolo Nostr. Ambos apresentaram ao juiz e-mails trocados com Satoshi que nunca tinham sido apresentados antes, e-mails que não estavam nem livro The Book of Satoshique compilou toda a escrita conhecida de Satoshi até então. Aqui um caveat é necessário. Embora tenham sido apresentados no âmbito judicial, trata-se de apenas prints de e-mails que não oferecem nenhuma prova criptográfica real de que eles se comunicavam com o verdadeiro Satoshi, ainda que haja fortes evidências para acreditarmos que os documentos são sim legítimos.

Adam Back, fundador da empresa Blockstream e o inventor do anti-spam chamado Hashcash em 1997 que inspirou a prova-de-trabalho do Bitcoin, divulgou cinco emails que trocou com Satoshi. Back já tinha comentado que trocara esses e-mails, mas foi a primeira vez que eles apareceram ao público. Eles nos mostram que antes mesmo de publicar o white paper, Satoshi já indica que usaria a prova-de-trabalho para desenvolver o que ele chama de e-cash ou electronic cash – o nome Bitcoin ainda não tinha aparecido. Back então que mostra a Satoshi as referências corretas para citar o b-money do Wei Dai, uma prova de conceito para dinheiro eletrônico que não vingou mas que inspirou Satoshi, e o auxilia para encontrar mais informações. Esses e-mail corroboram o que Back já tinha dito antes: ele próprio não se mostrou muito interessado em colaborar com o Bitcoin no início e que só foi se envolver anos mais tarde.

Já as centenas de e-mails que Martti Malmi (conhecido como Trickster ou Sirius nos fóruns anarquistas e libertários) trocou com Satoshi entre 2009 e 2011 trazem muitos detalhes interessantes. Malmi era ainda universitário na época, estava cursando o segundo ano de computação na Universidade Tecnológica de Helsinki. Mesmo assim foi um dos primeiros desenvolvedores do Bitcoin, ajudando tanto na parte de digamos “relações públicas” por assim dizer, desenvolvendo o FAQ, nas discussões no SourceForge e no site bitcoin.org, quanto colaborando na programação em C++ nas primeiras versões do código – inicialmente Bitcoin foi desenvolvido por Satoshi para para Windows e Martti trabalha para implementá-lo em Linux.

Nessas muitas correspondências, surgem várias questões que até hoje são discutidas. Por exemplo, já prevendo as alegações de “desperdício” energético do Bitcoin, Satoshi diz em uma passagem, que aqui fiz questão de traduzir:

“Se Bitcoin crescer ao ponto de consumir quantidades significativas de energia, penso que mesmo assim geraria menos desperdício do que o trabalho e os recursos intensivos que a atividade bancária convencional que ele substituirá” (03/05/2009)

Este comentário é impressionante por vários motivos. Poucos meses após a mineração do Bloco Gênesis, Satoshi já antevê que a mineração de Bitcoin irá consumir muita energia para gerar hashes por segundo, imagina que muita gente irá considerar esta atividade como um tipo de desperdício e já oferece a resposta dizendo que a quantidade de energia necessária para manter o sistema fiat de pé é muito maior. Ou seja, seu objetivo com o Bitcoin não era criar um novo PayPal ou um mero sistema de pagamento p2p – confusão que até hoje muita gente hoje faz – mas sim substituir todo o sistema bancário tradicional, sendo mais eficiente inclusive do ponto de vista do gasto energético.

Só recentemente a Galaxy Research publicou um relatório que concluiu que o sistema bancário global consome 263 terawatts/hora por ano, o dobro do que a rede Bitcoin utiliza. Mas isso considerando só o sistema fiat stricto sensu. Se levarmos em conta o complexo industrial militar necessário para fazê-lo ser aceito por meio da coerção, o quanto de energia que é desperdiçada em forma de inflação, consumo conspícuo gerado pelo crédito barato e nos ciclos de expansão e recessão resultando em malinvestments, a quantidade de energia e tempo vital desperdiçado pelo sistema fiat é muito maior.

Vemos também nesses e-mails a origem do termo “criptomoeda”, que Satoshi percebe que está sendo proposto nos fóruns de discussão do Bitcoin. Satoshi pergunta para Martti:

“Alguém veio com a palavra “criptomoeda”. Talvez seja uma palavra que deveríamos usar quando descrevemos o Bitcoin, você gosta dela?” (11/07/09)

Ao que Martti responde:

“Parece boa. ‘A Criptomoeda P2P’ pode ser considerado um slogan, mesmo que seja um pouco mais difícil do que dizer “O Dinheiro Digital P2P”. Ela descreve o sistema melhor e soa mais interessante, penso eu” (12/07/09)

Àquela época, Satoshi tinha em mente experiências fracassadas com outras “criptomoedas” como o Digicash de David Chaum, cuja falha principal, ele faz questão de ressaltar, estava em sua centralização e na necessidade confiança em terceiros intermediários.

Ainda especulando como dar “tração” ao projeto e tentar disseminar o uso do Bitcoin, Martti propõe a Satoshi a criação da primeira corretora, onde as pessoas poderiam trocar Bitcoin por fiat por meio de um leilão de oferta sem um preço fixo, como ocorre hoje. Já sentindo interesse financeiro que muitas pessoas passaram a ter com o Bitcoin, Satoshi se diz “desconfortável” com a proposta de promover o Bitcoin como um investimento. Ele disse que não havia problema se as pessoas chegassem a essa conclusão por conta própria, mas que isso não deveria ser um “pitch” daqueles envolvidos nos projeto ou na FAQ do site.

Sua resposta para o porquê de 21 milhões de unidades não poderia ser mais trivial. Foi uma “educated guess”, ou seja, um chute informado. Ele queria que uma unidade de 100.000.000 tivesse mais ou menos o valor das moedas fiat, por exemplo, 1 BTC por USD 100 milhões ou mesmo USD 10 milhões, neste caso só tendo que cortar um zero (1 USD por 10 sats), mas como é muito difícil prever o futuro não parece se preocupar com número exato contanto que siga o calendário de emissão e um limite máximo.

Os e-mails também reforçam a impressão de que Satoshi foi um programador solitário – inclusive trabalhando no dia de Natal, – e não uma equipe. Parece sempre abarrotado com as questões que vão surgindo, pedindo para Martti ajudá-lo com várias tarefas que uma equipe poderia resolver e o incentivando a atuar mais publicamente, inclusive como tesoureiro das doações ao projeto. Satoshi diz que começou a trabalhar no Bitcoin por volta de janeiro de 2008 e mostra sinais de fadiga 18 meses depois:

“Não consigo ajudar muito agora, estou muito ocupado como o trabalho, e preciso dar um tempo depois de 18 meses de desenvolvimento” (21/07/09)

É uma correspondência fascinante. Percebemos que estavam diante de algo grandioso, novo, mas ainda muito incerto. Talvez a única coisa boa que tenha sido provocada por Craig Wright, mesmo contra sua vontade, tenha sido a divulgação desses e-mails. Faketoshi entrará para história não como o criador do Bitcoin, mas como alguém que indiretamente ajudou a jogar luz sobre sua história. Espero que os tribunais façam justiça e imponham penas pesadas a este estelionatário.


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