De Visconde de Taunay a Satoshi Nakamoto

O Bitcoin é um sistema anônimo em que não é necessário saber a identidade ou o nome de quem está utilizando. Isso porque, diferente de um banco ou de uma rede social qualquer, ele não exige nem mantém nenhuma “conta” dos usuários em um servidor. O Bitcoin funciona com base em provas criptográficas e assinaturas digitais: quem tem a posse das chaves-privadas tem também todo o direito e o poder de mover as moedas dentro do sistema. Os nós distribuídos da rede farão todo o trabalho de verificar se determinada assinatura é válida. Se ela for válida e se os parâmetros de consenso do protocolo forem respeitados na transmissão daquela transação, ela será registrada com liquidação final no próximo bloco. No-questions-asked.

Por isso, querer atribuir identidade a quem envia ou recebe os satoshis de um endereço para outro sempre será um exercício probabilístico e aproximado, muitas vezes utilizando ficções jurídicas ou pressupostos grosseiros. Ninguém sabe exatamente quem tem a posse da chave-privada no momento da transmissão da transação e também ninguém sabe exatamente quem possui da chave-privada de determinado endereço. A rede do Bitcoin em si nunca vai dizer quem de fato foi o responsável por aquela transação ou quem é “dono” de algum satoshi.

A assinatura criptográfica funciona como a chave de um cofre. Qualquer pessoa que colocar a chave correta na fechadura do cofre – assinar o endereço contendo aquela moeda – poderá transferir os valores nele depositado. A posse desta chave pode passar de mão em mão – ou de mente em mente – por qualquer meio informacional ou físico possível. Você pode sussurrar no ouvido de uma pessoa ou anotar em um pedaço de papel, colocar dentro de um envelope e jogar no meio da rua para algum passante sortudo pegar. Ou pode inclusive dar diretamente um OpenDime como presente sem nem sequer saber a chave-privada do endereço.

Em todas essas hipóteses, aqueles satoshis que antes eram de uma pessoa passam a ser de outra pessoa sem que haja no sistema qualquer registro de que isto ocorreu. Saber é ter e ter é poder. A chave-privada, para usar um conceito jurídico, funciona como um título ao portador: quem portar este título terá todos os poderes e direitos que as regras do Bitcoin lhe permitir.


A característica do anonimato que acabei de descrever não é uma peculiaridade do Bitcoin. Ela é fundamental para o funcionamento de todo bom dinheiro. Foi, aliás, para isso que o dinheiro surgiu: para facilitar as trocas entre pessoas que não se conhecem e ganhar escalabilidade social, aumentando nossa capacidade para realizar trocas econômicas com pessoas anônimas entre si.

O padeiro que recebe uma moeda metálica como dinheiro pelo pagamento do pão que produziu não precisa confiar em mim. Posso ser um completo estranho para ele, ele não precisa saber quem sou, onde moro, quantos filhos eu tenho, quem é minha família, como consegui aquela moeda, se eu sou uma pessoa honesta ou não. Ele precisa, porém, confiar no dinheiro que eu entreguei a ele, se este é um bom dinheiro, se não é falso e se terá algum valor no futuro para poder trocar por outros bens. Este é inclusive o sentido preciso da palavra cash que encontramos no título do whitepaper do Bitcoin, “a peer-to-peer eletronic cash system”. Cash aqui no sentido de ser aquele dinheiro que passa de mão em mão diretamente usado como pagamento. O que antes só era possível física e localmente – a transferência de dinheiro sem intermediário e com liquidação final – se tornou possível global e eletronicamente depois do Bitcoin.


A anonimidade que um bom dinheiro nos dá não existe no escambo ou em sistemas de crédito bilateral. Se alguém faz uma promessa para mim ou se eu faço um favor para alguém e espero que essa pessoa me faça um favor de volta, preciso confiar no caráter dessa pessoa ou exigir garantias críveis de que esta dívida um dia será paga. Em tribos ou comunidades pequenas, é assim que as trocas funcionam e por isso que em muitas delas o dinheiro sequer existe. Há uma cena famosa, no começo de O Poderoso Chefão (The God Father), em que Don Corleone fica muito ofendido quando um conhecido tenta contratá-lo para vingar um mal que lhe fora causado. “O que eu lhe fiz para você me tratar com tamanho desrespeito?”, diz Don Corleone ao ouvir a proposta, como se o favor de um amigo poderoso como ele pudesse ser tratado como a contratação de um serviço.

https://www.youtube-nocookie.com/embed/i96VS_z8y7g?rel=0&autoplay=0&showinfo=0&enablejsapi=0

Don Corlone não está interessado em dinheiro, ele não é um mero prestador de serviços. O pagamento em dinheiro em quantia previamente determinada desobriga quem o contratou no momento do adimplemento, o pagamento tem “poder liberatório”, para usar outro conceito jurídico. Por outro lado, se um “amigo” poderoso lhe fez um favor, você fica em dívida com ele e algo equivalente (ou não) um dia pode lhe ser requisitado em troca. O poder do credor de exigir seu crédito neste caso será exercido de forma discricionária mais para frente e isso é mais útil para quem está preocupado com o exercício do poder dentro de uma comunidade fechada.

Assim são normalmente feitas as trocas em um número pequeno de indivíduos onde todos se conhecem. Em tribos e comunidades que ainda não passaram o número de Dunbar e com pouca especialização econômica, fica mais fácil saber quem deve o que para quem, ninguém é anônimo pois todos conhecem mais ou menos a história de vida dos membros da comunidade.

Conhecer a história de alguém também é ter a capacidade de cobrar as promessas devidas ou deveres recíprocos. Esta, aliás, é a base de uma das utopias mais famosas dos tempos modernos: quem sabe um dia poderíamos voltar a ter uma sociedade da camaradagem, do mito rousseauísta do bom selvagem vivendo em uma sociedade pré-adâmica harmônica em que um meio tão impessoal e abstrato como o dinheiro não seja necessário, em que será possível realizar trocas generosas em formas de potlatch perpétuos.

Muita gente também recorre a esta idealização para tentar trazer de volta de valores tradicionais como honra e sacrifício pessoal, e a idealização está justamente no fato de achar que estes valores podem ganhar escala global para além de uma comunidade pequena ou encontrar um eterno equilíbrio.

Além de essa configuração ser impossível em escalas maiores, como é sempre difícil estabelecer a equivalência de deveres, ninguém sabe exatamente quais são suas obrigações ou a extensão de suas posses, o que gera um estado perpétuo de insegurança e submissão ao credor mais forte. Os conflitos que inevitavelmente surgem neste tipo de situação assumem formas violentas como vendetas, duelos ou até mesmo com guerras entre tribos e comunidades rivais. A história deste tipo conflito é o material mais farto nos filmes e séries de máfia, mas para quem estiver interessado na relação mais direta entre dívida e dinheiro, Geoge Selgin neste artigo trata com mais detalhes da evolução do escambo para o dinheiro e porque Adam Smith no século XVIII estava certo e David Graeber, no século XX, estava errado.


Mas, voltando ao Bitcoin: nada mais natural que uma moeda sonante digital usado de forma anônima tenha sido criado por uma pessoa ou grupo de pessoas também anônimos. Os motivos para este fato podem ser muitos. Na sua última comunicação conhecida, Satoshi dá a entender que, por ser um projeto open source, ele próprio não gostaria de ser visto como um “líder” do projeto. Faz sentido que uma moeda que emergiu naturalmente no mercado não seja mantida por uma única pessoa ou por pessoas identificáveis, e sim que tenha uma vida autônoma mantida por seus próprios usuários e desenvolvedores.

Além disso, está sempre fresco na memória de qualquer cypherpunk a história do fracasso do ecash criado pelo genial criptógrafo David Chaum, que tentou implementar durante as décadas de 1980 e 1990 um sistema de pagamentos anônimos usando sistema de assinatura criptográfica chamada blind signatures. Seu erro fundamental foi montar um esquema de dependente de instituições centralizadas e identificáveis, como próprio David e sua empresa DigiCash Inc., que operavam este sistema privado usando o sistema bancário tradicional e as moedas fiat. O negócio de Chaum não deu certo, mas hoje uma das segundas camadas mais promissoras do Bitcoin é justamente uma implementação da mesma ideia de blind signatures no próprio Bitcoin (ver aqui). Em projetos de custódia descentralizada como Fedimint, elas também são utilizadas.

Se sairmos da seara estritamente monetária para a ver Satoshi Nakamoto e sua obra dentro de um arco temporal mais longo, podemos ver que o ele fez não é nada incomum na história das letras. Muitos são os pensadores cujo apelido literário se popularizou, o que acaba por nulificar ou proteger a entidade civil. Você muito provavelmente ouviu ou leu autores que fizeram uso de pseudônimos e heterônimos, prática tão antiga quanto a própria literatura. Como diz o crítico George Steiner,

Os motivos são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios de personalidade. O “companheiro secreto” (íntimo de Conrad), o “duplo” prestativo ou ameaçador, é um motivo recorrente – veja-se Dostoiévski, Robert Louis Stevenson e Borges. (G. Steiner, Quarteto, Folha de S. Paulo, 1996)

Na literatura, são inúmeros os casos dos assim chamados de pen names ou nom de plume. No Dictionary of Pseudonyms (1989) há 9.500 casos de pseudônimos, dentre eles Anatole France (Jacques Anatole François Thibault), Pablo Neruda (Ricardo Elicier Neftali Reyes Basoaldo), George Orwell (Eric Arthur Blair) e Stendhal (Marie-Henry Beyle).

O famoso filósofo iluminista Voltaire (François Marie Arouet) usou 173 heterônimos em seus escritos. O grande Daniel Defoe (Daniel Foe) usou 198 heterônimos documentados e nem precisamos falar do mais famoso na língua portuguesa, Fernando Pessoa, que usou em torno de 70 heterônimos.

No Brasil, Chico Buarque usava o pseudônimo de Julinho da Adelaide para escapar da censura durante o Regime Militar (1964-1985) mas acredito que o exemplo de Alfredo d’Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, seja o que mais se assemelha a Satoshi Nakamoto por fazer uso de um pseudônimo em sua análise econômica.

Monarquista e crítico da política monetária inflacionista da recém-proclamada República brasileira – fruto, aliás, do primeiro golpe militar brasileiro em 1889 – Visconde de Taunay escreveu o romance O Encilhamento, publicado em forma de folhetim na Gazeta de Notícias em 1893, usando o pseudônimo de Heitor Malheiros.

Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay, primeiro e único visconde de Taunay, que usou pseudônimo de Heitor Malheiros no romance O Encilhamento

Trata-se de um romance à clef e a tramada toda gira em torno de personagens inspirados em pessoas reais sofrendo as consequências econômicas da “inflação papelista” (isto é, causada pela emissão do papel-moeda) de 1890 promovida pelo aclamadíssimo e douto jurista Rui Barbosa, o então Ministro da Fazenda.

undefined
Charge de Rui Barbosa tentando equilibrar as contas do país usando a impressão de papel-moeda.

Pois é. Não é de hoje que juristas aliados a regimes autoritários causam estragos nas instituições nacionais e não é de hoje que o uso de pseudônimo é um escudo usado contra os mais variados abusos destes regimes.


Quando vejo os rumos que as coisas estão tomando em relação à privacidade na internet, ao sigilo bancário à liberdade de expressão em geral, costumo me lembrar das primeiras experiências que eu, ainda menino, tive com a internet.

A primeira rede social que usei foi o mIRC (Internet Relay Chat), lançado no início de 1995 para o Windows, e nenhum dos amigos que comigo surfavam na web usavam os nomes de seus registros civis. Todos usavam pseudônimos, apelidos, nicknames ou algum tipo de identidade virtual. Penso que esta cultura ainda é predominante em vários cantos da internet, em diferentes fóruns de discussão, em redes como Discord ou na cultura gamer em geral.

dd tc? Sim, é verdade. O mIRC ainda está vivo
Chat do mIRC era simples mas muito útil para conversar com os amigos, antes do SMS ou até do ICQ, e todos nós usávamos algum tipo de apelido ou nickname

O que é de fato recente e atípico são as redes sociais, como Facebook, Instagram ou Twitter, em que as pessoas fazem questão de mostrar quem elas são, com o mesmo nome do registro civil. Não é à toa que foram estes locais que se tornaram os verdadeiros honey pots de dados que são escaneados e manipulados pelas agências de inteligência ao redor do mundo. Mas ainda são lugares onde pessoas escolhem fornecer seus dados civis por achar que isso não só não prejudica sua vida como também ajuda na monetização de produtos ou serviços. Por isso foi tão fácil a investida mais recente de governos autoritários ao redor do mundo para querer identificar e controlar o discurso utilizando as mais varias desculpas como “desinformação” ou “discurso de ódio”. Os dados civis já estavam lá nos servidores dessas empresas centralizadas, fornecidos de graça pelos próprios usuários. Bastava mantar algum capanga governamental ir lá buscar.

Mas com certeza não vai parar por aí. O sonho de consumo dessas pessoas é algum dia quem sabe conseguirem implantar um sistema de ID digital sem o qual nenhum indivíduo conseguirá logar à internet. Uma ditadura 2.0. onde que toda interação informacional ou monetária deverá passar por um gatekeeper panóptico aprovado pelo regime. Desenvolvo com mais profundidade este argumento aqui.


Minha definição predileta de privacidade foi dada por Erich Hughes, no manifesto cypherpunk. Privacidade, diz ele, é quanto nós selecionamos nos revelar ao mundo. O pensador que mais conscientemente encarnou esta escolha talvez tenha sido Søren Kierkegaard, que assinou com seu nome civil somente seus textos mais bem comportados, os de teologia. Seus textos mais ousados de filosofia e poesia foram assinados como Johannes de Silentio, Victor Eremita e Frater Taciturnus. Os prefácios, ele assinou como Nicolaus Notabena. E sua atividade editorial foi desenvolvida por Hilarius Bogbinder.

A privacidade é a outra faceta da liberdade e ela é necessária em uma sociedade aberta na era eletrônica (uso aqui a mesma expressão do manifesto cypherpunk). Como mostra bem este vídeo, o Bitcoin é fundamental para continuar a protegê-la. Vivos hoje, talvez o Keirkegaard ou Visconde de Taunay usassem um nome diferente para cada rede social usassem e, muito provavelmente também creio eu, seriam bitcoinheiros.


Se este texto lhe foi útil, considere enviar alguns satoshis para o endereço: guilherme@bipa.app

Eu agradeço!

Support Guilherme Bandeira