Da beleza não tão rara do ouro, à beleza rara do bitcoin

“Dinheiro é ouro, todo o resto é crédito”

John Pierpont Morgan em 1912.

Até a existência do Bitcoin, consideradas todas as opções selecionadas em inúmeras trocas reiteradas ao longo da tempo, o ouro foi elemento natural que melhor serviu como dinheiro. Como todos sabem, isso ocorreu pelas características superiores que o ouro tem em relação a outros materiais e que são necessárias para um bem monetário funcionar adequadamente: divisibilidade, portabilidade, fungibilidade, durabilidade, verificabildidade e, claro, alta taxa de escassez (stock-to-flow ratio).

Mas o ouro não é só isso. O ouro também é um metal muito bonito, o que aparentemente é só uma coincidência e uma característica não-monetária.

Ouro tem uma rara beleza entre a classe dos metais talvez por isso mesmo muita gente tenha confundido sua beleza universalmente reconhecida com noções equivocadas como valor intrínseco. Junte-se o desejo universalmente compartilhado de guardá-lo ou usá-lo como ornamento na vestimenta, em palácios e igrejas com sua alta taxa de escassez, nasce um preço aparentemente perene. Quando a disseminada demanda encontra a oferta limitada, fica fácil cair na ilusão de que o ouro teria algum tipo de um valor em si, algo que explicaria a incrível capacidade deste metal amarelo e brilhante manter valor durante milênios, embora esta seja uma noção metafísica e economicamente equivocada.


Se à primeira vista a beleza não é um critério monetário, à segunda vista fica claro que ela é, ao menos, um critério proto-monetário.

De Carl Menger no clássico Da Origem do Dinheiro (1892), passando por Ludwig von Mises em seu famoso teorema da regressão exposta no seminal Teoria da Moeda e do Crédito (1912)chegando no Nick Szabo de Schelling Out (2002), todos concordam que as primeiras mercadorias que serviram como dinheiro eram colecionáveis usados como ornamentos e que o critério estético era importante para seu valor e aceitação enquanto bem valioso a ser trocado entre indivíduos e comunidades.

Conchas eram polidas e ossos eram trabalhados para que os povos ameríndios pré-colombianos pudessem ter dinheiro em forma de bijuterias, presentes de casamento ou legados em espólio, e assim participarem do altruísmo recíproco entre tribos e gerações diferentes. Aqueles que recebiam estes “proto-dinheiros” esperavam que esses objetos bonitos pudessem ser trocados por outros bens posteriormente, sendo esta justamente a origem das trocas indiretas que constituem todo bem monetário e uma superação tanto ao escambo quanto às formas de crédito bilateral entre desconhecidos.

Vários desses objetos bonitos foram testados com maior ou menor grau de eficiência, mas foi o ouro enquanto tecnologia monetária que dominou na história humana recente pelas características superiores acima mencionadas e também porque as sociedades que o adotaram prosperaram, conseguiram diminuir suas preferências temporais, souberam poupar e investir. Quem sobreviveu para contar a história sobreviveu porque soube usar bem monetário superior.

Não é por acaso que, no auge do padrão ouro, as ditas moedas nacionais – o franco, o marco, o dólar – não eram realmente moedas nacionais como hoje as fiats o são. As moedas nacionais do padrão ouro eram, conceitualmente, apenas recortes de ouro, sendo que a própria definição de dinheiro se dava no âmbito de pesos e medidas, ou seja, diferentes maneiras de recortar o metal precioso.

Por exemplo, o Gold Standard Act de 1900 dizia: o dólar americano consiste em 25,8 grãos de ouro de 90% de pureza, como se não houvesse diferença conceitual entre a moeda e o metal nestas especificações e a convenção humana apenas fosse uma forma de recortar e aferir a pureza o metal, e não constituir ex nihilo a partir da lei positiva uma moeda governamental com curso forçado, como são hoje as moedas fiat.

Quando ainda respeitávamos as leis naturais em assuntos monetários, as notas bancárias que circulavam na economia eram títulos ao portador resgatáveis em determinada quantidade de ouro depositados nos cofres, estes sim depositários do verdadeiro dinheiro – apenas representado pelas notas bancárias em forma de crédito. Embora estivessem estampadas nessas notas os emblemas históricos daquela sociedade (monarcas, presidentes, grandes legisladores), o importante mesmo era o ouro que as lastreava.

Vejam esta bonita nota de “100 dólares em moedas de ouro restáveis pelo portador sob demanda” emitida em 1922 nos Estados Unidos. Contradizendo o que dizem todos os economistas, se o velho J.P. Morgan citado na epígrafe deste texto olhasse para ela, diria: isso não é dinheiro. Ele diria: “Muito bonita essa imagem do honorável Senhor Thomas Hart Benton estampada na nota, mas sinto muito, esta nota é crédito. O dinheiro de verdade é aquele metal amarelo brilhante e bonito que está no cofre e o único capaz de dar liquidação final no padrão ouro”. Em outras palavras: not your vault, not your gold, not your money.


Diversas culturas notaram a improbabilidade geológica da existência do ouro na crosta do globo terrestre. Mas há a história geológica do ouro, a história humana com o ouro e a história da monetização do ouro, esta última muito mais recente que as duas primeiras.

Começamos a ver uso de colecionáveis como conchas e ossos de presas no Paleolítico Superior, mas foi só recentemente no século VI a.C. que os reis da Lídia como Creso, inovadores na arte política da senhoriagem, decidiram monetizar o ouro, cunhando as primeiras moedas douradas com seus emblemas. Mas isso não impediu que outras culturas distantes física e temporalmente tentassem explicar a existência aparentemente aleatória deste metal raro na crosta terrestre das mais variadas formas.

Na cultura ocidental, o ouro era o emblema de Apolo e objetivo final dos alquimistas. Na mitologia inca, o sol, Apu Inti, era fonte de toda vida, e o ouro, por sua vez, eram as suas lágrimas. Uma explicação, aliás, não de todo errada, já que o ouro é formado em processos nucleares das estrelas e são jogados pelo universo nas explosões de supernovas. Os incas diziam que Apu Inti criou os primeiros seres humanos, Manco Cápac e Mama Ocllo, e os enviou à Terra para começarem a civilização. Para mostrar sua benevolência, Inti presenteou os incas com o ouro, uma dádiva divina, também uma manifestação material da energia solar. Se em algum momento da história humana decidimos transformar o ouro em dinheiro, foi uma forma que encontramos de transformar essa energia natural condensada como representante do tempo e energia humana necessária para a produção de bens que valorizamos por sua utilidade. Justo. Value for value.

Mesmo desmonetizado hoje em dia sob a vigência do padrão fiat, o ouro, ao menos em papel, ainda está no balanço de muitos bancos centrais e também no imaginário de gente ressentida e ignorante. Uma delas é o Sr. Flávio Dino, o Ministro da Justiça do governo brasileiro, que ainda se incomoda com o fato de a Coroa Portuguesa ter minerado ouro em solo brasileiro há muitos séculos – mesmo antes de o Brasil existir enquanto país – dizendo que Portugal deveria entregar de volta o ouro roubado. Aqui não vem ao caso destrinchar a ignorância histórica e jurídica do Excelentíssimo Senhor Ministro da Justiça – ainda que se considere que foi um roubo, tal crime já teria prescrito e seus autores já estão mortos há muitos anos.

A melhor resposta ao ministro veio de um post certeiro de Felippe Hermes, que escreveu:

Curiosidade inútil: o tal ouro que Portugal levou do Brasil em 300 anos é o equivalente ao que o Brasília levou do pagador de impostos nos últimos 10 dias (considerando a cotação atual e não conversão histórica). O motivo, claro, é que o ouro passa longe de ser escasso. De fato, a produção cresceu 2000% nos últimos 2 séculos, graças ao avanço da tecnologia. Isso faz com que Portugal tenha levado do Brasil em 3 séculos o mesmo que o mundo produz em ouro hoje a cada 15 dias (em 2022 o mundo produziu 3000 toneladas de ouro).

É exatamente isso: na cotação atual, o que o governo brasileiro arrecada do brasileiro por dia é muito mais do que Portugal levou do Brasil em séculos. Recursos, aliás, que saem do bolso do brasileiro e vão direto para financiar o salário do Sr. Ministro Flávio Dino.

Outro ponto fundamental e que também está no post do Felippe: a oferta do ouro é elástica, ou seja, ela reponde ao preço. Se o preço sobe, há um incentivo inflacionar sua oferta minerando ainda mais ouro e os seres humanos são ótimos nisso, somos seres muito engenhosos quanto temos incentivo$ forte$ para tal. Hoje conseguimos minerar exponencialmente muito mais ouro do que no século XVIII, quando de fato se iniciou a corrida do ouro em solo brasileiro.

Por isso, ao invés de destilar seu ressentimento para uma nação amiga como Portugal, o ministro deveria deveria se atentar ao fato de estar ocorrendo neste exato momento uma nova corrida do ouro 2.0. com a mineração de bitcoin, como já avisei aqui há mais de dois anos. Brasil tem um enorme potencial energético e geraria muito mais riqueza se começasse a minerar bitcoin, este sim o melhor bem monetário que existe, verdadeiramente escasso e por que não, bonito?


Um dia eu estava lendo sobre o grande matemático brasileiro Artur Avila e fiquei surpreso quando li sobre importância da beleza no papel de suas descobertas. Dizia o artigo:

“Milhares de ideias ocorrerão ao matemático ao longo de sua vida produtiva. Todos dizem que o principal critério para reconhecer imediatamente a superioridade das que se impõem é o fato de serem belas. Matemáticos são mais próximos de artistas do que de engenheiros. “Imagine duas coisas inteiramente distintas, criadas independentemente”, propõe Artur, “e imagine que, por alguma razão misteriosa, você descobre que elas são parte de uma coisa só.” Ele está descrevendo um dos modos do senso estético, ao qual é particularmente sensível.

O autor do artigo argumenta o senso estético do Artur vem da beleza da totalidade e de sua capacidade de juntar ideias, descobrindo relações insuspeitas entre as coisas, como se houvesse uma música se só os matemáticos conseguissem ouvir e como se Arthur conseguisse juntar melodias aparentemente incompatíveis. Satoshi não era matemático, mas a relação de Arthur com a matemática me faz pensar se Satoshi também não tivesse se utilizado de um critério estético para criar um tipo de beleza rara para a emissão de bitcoins.

Sabe-se que Satoshi não foi um grande inventor na área de criptografia e que se utilizou de ferramentas já existentes como SHA-256, Merkel Trees, etc., codando em C++ de uma forma não muito bonita. Mas vejamos por outro aspecto. O nascimento da rede do Bitcoin como a explosão de uma supernova digital e vinte e um milhões de unidades foram lançadas no terreno das possibilidades matemáticas, cada uma delas um cronograma rígido para serem emitidas.

A escassez digital que Satoshi encontrou também é uma escassez bela, só que bela matematicamente, encontrados matematicamente nos confins da entropia limitada pelo nonce e alcançáveis só pela prova-de-trabalho das mineradoras. A emissão de novos bitcoins são acontecimentos únicos e ao mesmo tempo eternos, a cada 10 min aproximadamente novos bitcoins são encontrados e colocados em uma cadeia sucessiva de custódia.

Essa ideia foi recentemente aventada por ninguém menos que Adam Back, inventor do HashCash, que escreveu:

Embora os bitcoins extraídos de um bloco válido não sejam visuais como um Picasso, eles são únicos como um floco de neve sob o microscópio. Os zeros iniciais são esteticamente agradáveis, a improbabilidade estatística, o custo termodinâmico de encontrá-los – tudo isso é como arte computacional, um diamante digital raro e exclusivo para se maravilhar. (tradução minha)

Encontrar ouro em uma mina também exige sorte e trabalho. Mas o ouro encontrado in natura e que foi lá depositado pela entropia natural precisa de uma grande dose de trabalho não só para ser encontrado como também para ser monetizado. Precisa ser purificado, derretido e ir para alguma forja para adquirir o padrão fungível de moeda ou lingote. O bitcoin, por outro lado, quando “sai” da natureza já sai prontinho no endereço do minerador que o encontrou. De lá ele pode ser facilmente transportado em pouco tempo para qualquer outro endereço via canais de comunicação (esta propriedade é explorada pelo próprio Satoshi discutindo o teorema da regressão de Mises que citei acima).

Outra diferença importante. Bitcoin, diferente do ouro, tem uma oferta inelástica. Se o preço do bitcoin sobe, o incentivo para minerar mais bitcoins se reflete em aumento da força computacional em forma de mais hash rate por segundo, mas isso não se reflete mais bitcoins além do esperado. Isso porque a oferta do Bitcoin já foi pré-programada pelo protocolo.

Aconteça o que acontecer com preço do Bitcoin, a oferta vai se reduzindo de forma assintota em cortes quadrienais de 50% da recompensa por bloco. Esses eventos, chamados de havings, só aconteceram três vezes na história da humanidade: no dia 28/11/12 passamos de 50 para 25 por bloco, no dia 05/07/16 passamos de 25 para 12,5 e no dia 11/05/20 passamos de 12,5 para os 6,25 por bloco atuais. O próximo está programado para abril do ano que vem. No momento que escrevo, mais de 93% da oferta já foram emitidos. Faltam 7% para todo o resto da história. Bitcoins, que já são belos e raros, ficarão ainda mais raros. Tudo indica que sua beleza ficará mais custosa de ser encontrada, haja vista que a hash rate já está o triplo da hash rate de apenas três anos atrás (ver o abaixo).

Bonito, não é?


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GUILHERME BANDEIRA
NOV 21